Cosmovisão Bíblica Familiar (Série Essencial Invisible College)

Esta é uma série de textos escritos para o curso de Teologia Essencial do Invisible College. O curso consistiu no estudo de um tema da teologia por mês com leitura de um livro, materiais complementares em texto, áudio e vídeo, um fórum de perguntas e respostas com um convidado, uma sessão de tutoria com um dos professores em um grupo pequeno e a entrega de um texto (resenha ou artigo). O texto a seguir foi escrito em Abril de 2021 para o tema Cosmovisão.




A família é a instituição mais antiga do mundo. As relações familiares traçaram hierarquias e limites, desenvolveram sociedades e culturas e moldaram o pensamento humano. A própria identidade é determinada e, ao mesmo tempo, determina a função que o sujeito exerce na família e, consequentemente, na sociedade. A partir da família e de suas necessidades de sobrevivência e crescimento determina-se o que é um adulto e uma criança, quais são as funções de um homem e de uma mulher, de uma mãe e de uma avó.

As relações familiares recebem muita influência da religião e da filosofia do seu tempo, mas são passadas de geração em geração, principalmente, pela tradição: a contação de histórias, a repetição de comportamentos, a atenção à sabedoria anciã. O costume dos mais velhos continua sendo um grande valor em diversas civilizações.

Na cultura ocidental, o desenvolvimento da psicologia e dos estudos sobre a infância e o comportamento no decorrer do século XX impactaram a família e suas relações. Essa diferença é bastante percebida no livro “A visão transformadora”, quando os autores demonstram a manifestação de uma cosmovisão até mesmo nos atos mais ordinários da vida, como o banho dos bebês. Mesmo sem pensar a respeito, os aspectos mais banais da vida comum e familiar são regidos por uma cosmovisão, que cria a “cultura familiar”. São os valores formativos da infância e as tradições passadas entre as gerações.

O ambiente familiar forma e propaga cosmovisões, mas existem outros momentos e ambientes propícios a crises que podem levar a romper e adotar uma cosmovisão a partir de uma nova perspectiva de vida. A formação de uma nova família pode ser um desses momentos de crise, quando aqueles que estão prestes a se tornar pais têm a oportunidade de refletir sobre a sua cultura e abraçar ou romper com a visão de mundo que conheceram na infância. Mas o que define exatamente uma cosmovisão?

Cosmovisão é uma estrutura perceptiva: uma visão de vida e uma visão para a vida. Ela dá resposta às questões fundamentais da vida: quem eu sou? Onde estou? O que está errado? Qual é a solução? Essas questões baseiam os anseios e crenças fundamentais, a razão de viver e morrer, as relações interpessoais e das pessoas com o mundo. No entanto, nem sempre essa estrutura perceptiva é percebida, como a criança que cresce míope e, como nunca conheceu o mundo de outra forma, pensa que ele é assim como ela o enxerga, e que todas as pessoas devem enxergar assim também.

Nesse sentido, é interessante observar que, para WALSH & MIDDLETON, uma boa cosmovisão deve estar ciente de suas limitações e disposta a aprender. Isto porque toda cosmovisão é uma interpretação humana sobre a vida e o mundo. Ainda que a cosmovisão se denomine cristã ou bíblica, nenhuma cosmovisão é o cristianismo ou as Escrituras. A cosmovisão que se denomina bíblica deverá sempre voltar à fonte para entender o mundo por meio de uma compreensão cada vez maior das Escrituras.

Perceber a cosmovisão não é importante apenas para mudar de direção. A consciência permite a autocrítica e o refinamento. Será sempre necessário examinar se a prática condiz com o discurso ou se estamos embarcando em dualidades, rejeitar aquilo que não pertence e aprofundar as raízes nas fontes da cosmovisão adotada.

Mesmo entre os cristãos confessionais, a cosmovisão dominante interfere e muitas vezes suplanta a cosmovisão bíblica na vida familiar, vista como um campo privado à parte da vida religiosa. Diversas influências e filosofias que adentram as famílias para dar uma nova perspectiva à educação dos filhos trazem também cosmovisões ou fragmentos de cosmovisões que contaminam as respostas já conhecidas para as perguntas fundamentais.

Esse movimento secular é respondido por outro movimento preocupado em preservar e resgatar as tradições e a religiosidade familiar. É importante que essa preocupação não se torne uma obsessão, com tendências monásticas, para blindar a cultura familiar de qualquer influência externa. Essa blindagem impede a visão dos seus verdadeiros limites e extingue a permeabilidade com a qual podemos aprender – características de uma boa cosmovisão.

Precisamos lembrar que cosmovisões são estruturas humanas. Trata-se da nossa visão imperfeita do mundo e para o mundo. Somente Deus tem a visão perfeita. Quando nos aproximamos de Deus, estudando as Escrituras e experimentando o agir do Espírito Santo, somos contemplados com a sua visão. Como a criança míope que usa óculos pela primeira vez, percebemos, enfim, como era distorcido o mundo que ela enxergava. Essa nova consciência também nos faz perceber o quanto precisamos de Deus.

A vida familiar, assim como a economia, a arte, a ciência, a agricultura, é resposta ao mandato cultural de Deus. Mas isso não faz de nenhum modelo familiar o modelo correto. Como parte de uma estrutura humana, a família também está caída. Assim, muito embora não possamos afirmar que não exista um modelo familiar correto e bíblico – porque a verdade absoluta existe e está presente em Cristo – seria também errado afirmar que qualquer modelo humano seja algo mais do que uma tentativa de aproximação do ideal divino.

Quando se trata de criação de filhos, há uma forte tendência de deixar que as relações se desenvolvam “naturalmente”, repetindo ciclos e mantendo tradições sem refletir sobre a conveniência dessa permanência. Contrariando esse pensamento, muitos pais e mães têm refletido sobre a sua parentalidade à luz do conhecimento adquirido na academia e em outros meios de estudo. Essas reflexões ensejam a profundidade e o discernimento de que carecem muitos pais que não sabem explicar por que agem como agem, às vezes até contrariando sua própria vontade.

É importante conhecer o desenvolvimento humano, o funcionamento da mente e da aprendizagem, as relações sociais e as formas de comunicação mais eficientes. Da mesma forma, é útil para a educação de filhos conhecer métodos de aprendizagem, pedagogias alternativas à formação dominante, comunicação não violenta, disciplina positiva e tantas outras teorias e abordagens comportamentais, bem como suas críticas. Todo esse conhecimento deve ser levado cativo às Escrituras e confrontado com a Palavra de Deus para permear a cosmovisão bíblica familiar. A boa cosmovisão bíblica usará a Bíblia não como escudo contra qualquer teoria humana, mas como filtro para examinar todas estas coisas, retendo o que é bom.

De outro modo, a vigilância se aplica ao consultar as Escrituras, não para examinar o texto bíblico, mas o olhar do leitor, que pode estar contaminado, embaçado ou distraído por outras “verdades”. É necessário achegar-se às Escrituras com o coração contrito e quebrantado, disposto a aprender e abandonar os ídolos do coração. Não confrontamos o texto bíblico com aquilo que aprendemos, mas somos confrontados pelo Espírito Santo a respeito daquilo que assumimos como verdade. O examinador humilde examina a si mesmo.

O tema da família traz implicações muito íntimas. Alguns dirão que a família é sagrada, outros carregam marcas de abuso e violência que colocaram essa importante instituição em descrédito. Em qualquer circunstância, precisamos lembrar que a família foi criada por Deus, e como tal é valiosa; mas que também sofre as consequências da queda, como toda a Criação. Acima de tudo, precisamos lembrar que nossa esperança não está em métodos mais eficientes, esforços mais dedicados ou normativas mais rigorosas, mas na redenção em Cristo Jesus. Enquanto isso, precisamos entender os fenômenos culturais e submetê-los ao senhorio de Cristo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2018.

GOHEEN, Michael W; BARTHOLOMEW, Craig G. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo na intersecção entre a visão bíblica e a contemporânea. São Paulo: Vida Nova, 2016.

WALSH, Brian; MIDDLETON, J. Richard. A visão transformadora. São Paulo: Cultura cristã, 2010.

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